quinta-feira, 7 de junho de 2012

La question (1971)



Uma noite, em Paris, Françoise Hardy foi convidada por uma amiga brasileira que a queria apresentar uma pessoa a qual Françoise deveria escutar. Tratava-se de Valeniza Zagni da Silva, ou, como era mais conhecida, Tuca, uma compatriota cantora e violonista. Seduzida pelas melodias que escutava, Françoise convida Tuca para colaborar com a elaboração de seu próximo álbum.

Em sua autobiografia, Françoise conta por ela própria o desenrolar dessa história:

                   "Minha amiga Lena, que não acreditava em acaso, encontrou por “acaso” na farmácia Saint Germain, a sua compatriota Tuca, uma artista com quem eu já havia cruzado no Rio de Janeiro. Era Tuca. Ela compunha suas músicas e as cantava à noite acompanhada por seu violão num restaurante brasileiro. Quando a vi, foi amor à primeira vista, pessoal e artisticamente falando. Queria que ela me desse a música Même sous la pluie, que parecia feita para mim, mas ela já a havia prometido a uma outra cantora. Tuca tinha uma personalidade forte e um rosto carismático que fazia pensar no rosto de Marlon Brando. Falando nisso, dois anos depois do nosso encontro, fomos assistir a um show de um saxofonista maravilhoso, Gato Barbieri, que acabara de compor a música O último tango em Paris. Marlon Brando estava na plateia. Tuca o viu e, para minha vergonha, ela passou o show inteiro com a cabeça virada em direção ao ator.” (P. 129)

Engatada a amizade e a parceria entre as duas artistas, Tuca ficou encarregada de fazer os arranjos junto com Raymond Donnez, que fez a direção artística do álbum. Tuca assina a maioria das músicas do álbum La question - 10, ao todo -, que chega ao mercado francês em 1971. As outras duas músicas eram uma composição de Françoise - a faixa-título - e uma versão de A transa, do cantor brasileiro Taiguara. A parceria casa perfeitamente os acordes do violão de Tuca, com pitadas de bossa nova, junto às notas soadas por Francis Moze na guitarra e por Guy Pedersen no contrabaixo. O violino é de Catherine Lara. 

Ainda em sua autobiografia, Françoise explica como foi sua experiência musical ao lado de Tuca e toda a produção do álbum:

                   "Quando voltei do Brasil [Depois do Festival Internacional da Canção], a ideia de fazer um disco inteiro com Tuca começou a germinar e se concretizou muito naturalmente. Eu gostava de todas as canções que ela me propunha. Ela acabou me dando Même sous la pluie que ela tomou, não sei como, da cantora à quem a havia prometido. Melodias muito diferentes não são o meu forte, mas a maior parte das músicas dela tinham uma atemporalidade que transcediam as músicas brasileiras.

Geralmente, quando gravamos um disco, não temos tempo de retrabalhar as canções antes com o compositor. Acabamos aprendendo-as sós num cantinho e correndo o risco de adquirir maus hábitos dos quais mais tarde seria difícil se livrar. Depois, cantamos a primeira vez no estúdio de gravação sem estar obrigatoriamente bem preparados, sendo que a gravação de uma música dura apenas uma hora ou duas no máximo. Com Tuca tudo foi diferente. Durante um mês, ela veio todos os dias à minha casa para me fazer ensaiar as músicas uma a uma. Finalmente, durante as gravações, eu já chegava ao estúdio e não precisava mais contar o tempo entre as palavras e o tamanho das frases, porque eu podia me guiar pelo acompanhamento do violão que os ensaios me ajudaram a memorizar.

Gravei todas canções diretamente com Tuca no violão, e, no contra-baixo, Guy Pedersen, um excelente músico de jazz. Só precisamos de três tomadas para cada música. Depois viajamos juntas para a Córsega para descansarmos um pouco. Tuca dormia muito tarde e eu devia me armar de muita paciência para escutar as eternas lamentações dela sobre a paixão desesperada por Lea Massari. Essas lamentações sempre terminavam em lágrimas, porque a bela atriz italiana não era lésbica e dividia sua vida com um piloto de avião. Tuca tinha um cheiro muito forte do qual nenhuma ducha conseguia livrá-la, e isso era um grande complexo para ela. Evidentemente, a relação dela com o corpo era complicada. Sinto muito por não ter perguntado mais sobre a infância e a relação dela com a mãe.” (Pgs. 136 e 137)

"Depois do descanso, voltamos para Paris decididas a colocar cordas na maior parte das músicas. Trancamo-nos muitas tardes num local emprestado pelo editor dela onde ela me mostrou no piano diversos temas que lhe vinham ao espírito até que entrássemos num acordo sobre uma ou outra composição. Normalmente, descobrimos a orquestração no estúdio, e quando ela não é o que esperamos já é tarde demais para retrabalhar. Dessa vez, foi diferente. Foi a única vez em que eu participei de uma escolha tão crucial. Tuca pediu então a Raymond Donnez para escrever e dirigir o que havíamos cogitado juntas.

Cathérine Lara, grande admiradora de Claude Nougaro, propôs-se a fazer os contatos com a Orquestra de Paris, onde ela tocava, para interpretar as cordas de Tuca e Raymond Donnez. O resultado ultrapassou as minhas esperanças. Nunca eu tive tanto orgulho de um disco. Adorava e adoro ainda certas canções como Le martien, La maison, La question, Chanson d’o, Doigts - que eu compus - e Rêve, uma linda melodia de Taiguara." (P. 139)

Françoise Hardy interpreta La question


Apesar das críticas favoráveis, o sucesso comercial do álbum não foi evidente. Durante o período Sonopresse (1969-72), Françoise Hardy financia e se ocupa das gravações de suas músicas do início até o fim, mas deixando de lado um pouco da promoção de sua imagem, limitando-se apenas a idas aos programas televisivos. Por isso, suas canções passam a tocar menos nas rádios. Os seus álbuns também passam despercebidos e representam fracasso de vendas no comércio musical. No entanto, estes são os discos de que ela mais gosta, pois representam um material quase que totalmente a seu gosto e com conteúdo muito biográfico. Aparições no cinema, então, nem pensar!

No entanto, em especial, Françoise comenta suas impressões sobre o álbum La question:

                   "Esse disco me parecia mais homogêneo, mais classudo e sofisticado que os anteriores, e, se ele não encontrou, contrariamente aos demais, o sucesso do grande público, eu tenho a pretensão de acreditar que ele alcançou um outro. Um exemplo: nos anos 80, cruzei rapidamente com Susan Vega e ela me reconheceu graças a esse disco que o irmão dela escutava frequentemente. Em outra ocasião, eu estava indo para o Japão e jornalistas me confessaram a predileção deles por esse disco É assim mesmo, acontece às vezes. Um disco ambicioso passa mais ou menos despercebido no seu lançamento, mas continua a existir a longo tempo.” (P. 139)

Contracapa do álbum de 1971 mostra fotografias de Françoise em estúdio e com Tuca, em Paris

Mesmo depois de terminado a parceira entre Hardy e Tuca, a amizade das duas seguiu adiante:

                   “Num determinado momento, nós saíamos regularmente juntas. Acho que chamávamos a atenção: Lena não era magra, Tuca pesava uma centena de quilos para alguém de 1,60m de altura, e eu fininha entre as duas. Incrível, mas eu que nunca soube dançar, ficava contaminada pelo bom humor delas e me acabava com elas nas pistas de dança das discotecas que elas me levavam. Tuca era apaixonada por Lea Massari, mas sem esperanças. Eu, apaixonada por todo-mundo-sabe-quem, e Lena sofria com seu físico, pois mesmo se ela tinha muitos amigos, não tinha nenhum namorado. Um dia, num pequeno supermercado, diante do olhar assustado da vendedora por conta das muitas compras feitas por Tuca, esta respondeu: “Se a gente não come, morre; se come, morre também; então eu como.” Que pena! Algum tempo depois, ela retornou ao Brasil, engordou mais 40 quilos e resolveu perdê-los com a ajuda de um médico inescrupuloso que a fez emagrecer rápido demais. Ela morreu aos 34 anos…” (Pg. 130)

Apesar do fraco número de vendas na Europa, o LP La question é um dos mais conhecidos de Françoise Hardy no Brasil. A faixa-título do disco fez sucesso no Brasil, quando fez parte da trilha sonora da novela Selva de Pedra, em 1972. A música ficou conhecida como tema da personagem Fernanda, interpretada pela atriz Dina Sfat. O disco chegou aqui no mesmo ano da novela, ilustrado com a capa e a contracapa da compilação Françoise, de 1969. O sucesso foi grande em terras brasileiras e acabou abrindo caminho para Hardy ter outras músicas inclusas em trilhas sonoras de novelas (Fleur de Lune em O Bem Amado, em 1973, e Le Crabe em Carinhoso, entre 1973 e74).

Edição brasileira do álbum La question, lançado no Brasil em 1972

O ano de 1971, repleto de parcerias brasileiras, revela ainda mais uma surpresa. Além de Tuca e Taiguara, artistas que na época estavam na França, uma parceria com a cantora Nara Leão gerou uma canção em português, chamada Bowm Bowm Bowm. A música saiu em um compacto, somente no Brasil. Acredita-se que Tuca tenha sido a responsável por apresentar Hardy a Nara. No entanto, não é possível afirmar isso. Um ano depois, Bowm Bowm Bowm seria letrada em inglês e em francês e figuraria os discos If You Listen e Et si je m’em vais avant toi, respectivamente.


1. Viens (Pascal Bilat - Tuca)
2. La question (Françoise Hardy - Tuca)
3. Même sous la pluie (Franck Gérald - Tuca)
4. Chanson d'o (Bob du Pac - Tuca)
5. Le martien 
(Franck Gérald - Tuca)
6. Mer 
(Françoise Hardy - Tuca)
7. Oui, je dis adieu (Françoise Hardy - Tuca)
8. Doigts (Françoise Hardy)
9. La maison (G.G. - Tuca) 
10. Si mi caballero (Franck Gérald - Tuca)
11. Batî mon nid (Franck Gérald - Tuca)
12. Rêve (A transa) (Françoise Hardy - Taiguara)

BÔNUS
• Poisson (Jacques Blanchard) (B-side do single Rêve, de 1972)
• Bowm Bowm Bowm (Nara Leão - Tommy Brown, Micky Jones)


EP - Bowm Bowm Bowm (Em Português)
• Bowm Bowm Bowm (Nara Leão - Tommy Brown, Micky Jones)
• Point (Françoise Hardy) (Esta música segue no disco Soleil, de 1970)

2 comentários:

  1. Caro amigo, você não imagina como fiquei feliz em encontrar este blog. Há 6 anos escrevi um texto em meu blog:
    http://blogdochoro.zip.net/arch2006-11-19_2006-11-25.html
    Como poderá ver, seu texto sobre o disco LA QUESTION veio de encontro ao meu - a história entre Françoise Hardy e Tuca veio à tona - e de forma generosa nos detalhes! - no livro de Françoise (e graças a sua descoberta e tradução). Além disso a pesquisa de seu blog é abrangente - sobre a repercussão do disco no Brasil e no mundo - ou sobre detalhes técnicos, etc.
    E se você observar nos comentáros do meu texto, verá que muita gente procura informações sobre Tuca, como a grande cantora brasileira Miriam Mitah.
    Um grande abraço agradecido.
    Hélio

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  2. Excelente texto! Lembrei-me também da versão que Françoise gravou de "Valsa para uma Menininha" de Toquinho e Vinícius, em 1973. "Berceuse".

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